quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

POR LINHAS TORTAS - Parte 03

POR LINHAS TORTAS

Um conto d’O Solucionador

Parte 03: A Escrever Direito

Passou o polegar e indicador pela gola do casaco e ajeitou-a alisando o tecido. Examinou-se durante alguns segundos nas portas de vidro, verificando se o resto do fato estava apresentável e, acima de tudo, respeitável. Concluída a análise, pegou na pasta executiva de couro castanho que mantinha segura entre os joelhos e empurrou a porta que dava acesso ao edifício. Varreu o olhar pela larga recepção, cheia de luz que entrava pelas paredes de vidro, e seguiu até às escadas do edifício, erguidas nas traseiras da recepção, ascendendo ao primeiro andar. Entrou numa porta de madeira envernizada, com uma viseira vertical em vidro e rede de arame, ostentando uma placa que dizia “Secretaria 1”.

Encostado ao outro lado do fino balcão, elevado a uma altura ligeiramente acima da cintura de um indivíduo de estatura média e que servia de separador entre atendedor e atendido, estava Cajó, sempre com o cabelo corredio de oleosidade, culpa da seborreia crónica que o afligia.

- Então “sotôr”, por aqui? - perguntou o administrativo com a habitual postura de bajulação infrene perante quaisquer representantes da classe judicial - Tinham-me dito que estava doente.

- Doente? Não, não. - respondeu Falco Falcão, sem oscilações na voz, sem ares de surpresa, sempre pronto a cultivar inverdades com a destreza de um mentiroso patológico - Foi só uma indisposição matinal. Tive medo que fosse algo pior mas já passou. Sabe como é, amigo Carlos, o corpo quando dá sinais temos de os ouvir. É a PDI…

Entre elogios banais, atestando que Falco não só “estava ali para as curvas” como nem sequer aparentava a sua real idade de sessenta e uma primaveras, recolheu a documentação que necessitava e retirou-se, biqueiras dos impecáveis sapatos de verniz apontadas à sala onde o seu cliente esperava. Chegando ao destino estacou momentaneamente, como que à escuta, abrindo a porta num repente, fechando-a suavemente atrás de si. Cristóvão, sobressaltado, ainda atormentado pelo episódio vivido ao início da manhã, desabou da cadeira onde se sentava largado num pranto desaustinado. O advogado mostrou-se genuinamente contérrito. Após o suborno do dia anterior não contava encontrar o réu à sua espera, pelo menos não inteiro e consciente. O pobre diabo encolhia-se num canto, tentando proteger as extremidades, enquanto carpia efabulações sobre raptos e figuras sombrias, ostentando uma caraça impassível de nariz adunco e orelhas proeminentes, que torturavam espetando agulhas sob as úngulas. Falco sentou-se abrindo o último botão do casaco para deixar a barriga expandir confortavelmente.

- O que raio se passou aqui?

A carrinha galgava, desembaraçada, o asfalto da circunvalação rumo a destino certo. Ele abriu, com uma mão, a maleta colocada no banco do passageiro atirando para pequenas divisões a barbicha falsa, a probóscida e as orelhas exageradas. Limpou a face com um toalhete, enrolou-o dando-lhe como derradeira morada um saco preto contendo lixo que viajava no chão do veículo. Assinalou a mudança de direcção e guinou para a direita entrando num bairro residencial. Os prédios, sinais de humidade nas esquinas das varandas verdes, tinta já cascada da idade, reagiram com indiferença à chegada do automóvel desconhecido que, sem hesitações, estacionou em frente ao Lote N.º 13. Subiu ao segundo andar e destrancou a porta do apartamento B.

De luvas calçadas deitou mãos à obra, revistando cuidadosamente cada divisão do pequeno T1. Nos armários da cozinha antiquados - portas em aglomerado com folha de madeira envernizada e uma orla a toda a volta em borracha negra - encontrou apenas pacotes de pratos, copos e talheres em plástico. O único electrodoméstico presente era um velho, mas bem tratado, forno microondas. Havia um saco de lixo, que aparentava ser para cinquenta litros, encostado a uma parede, completamente cheio, bem atado e com a face externa sem qualquer sujidade ou gordura. A marquise não servia outro propósito senão deixar entrar luz no compartimento e armazenar alguns implementos de limpeza doméstica básica. Passou para o que deveria ser a “sala de estar”... totalmente vazia. Limitou-se a nocar as paredes procurando esconderijos em secções ocas. Tudo indicava que Cristóvão adoptava um estilo de vida bastante espartano, desprovido de qualquer real conforto, usando o apartamento apenas como dormitório ou, a julgar pela impressora profissional que encontrou no quarto, como local de “trabalho”. A falta de qualquer tipo de aparelho electrónico ou memória externa que pudesse estar ligada à máquina não o espantou. Examinando detalhadamente a casa de banho, achou uma máquina fotográfica de boa qualidade, e apetrechos afins, escondida no tanque do autoclismo, acondicionada em sacos selados. Fugindo à luz difusa da latrina, sentou-se num colchão de campismo esticado no quarto, ao lado do equipamento informático. Uma curta pesquisa pela memória da câmara confirmou-lhe que tinha em sua posse aquilo que o haviam contratado para reaver.

No escuro da noite o parque, alegre, verdejante e cheio de vida durante o dia, mostrava-se opressivo e intimidador. Mal iluminado por um candeeiro público, sentado com desconforto num banco humedecido pela geada, encontrava-se um distinto e anafado senhor num impermeável de boa qualidade, com a cabeça tapada por uma boina de fazenda. Ele observava-o das sombras, recordado da primeira vez que tinham falado, recomendação feita pelo Antiquário.

O Dr. Edgar Morais era um velho cliente do Antiquário, tendo até já recorrido às ligações deste a “certos elementos do submundo” para solicitar a compra de peças artísticas impossíveis de adquirir pelos circuitos legais e o eficiente receptador sabia bem que profissionais recomendar para cada serviço que chegava à sua mesa tosca nas traseiras da casa de penhores. Assim conheceu o cirurgião, já perto da casa dos sessenta, carreira na direcção de um hospital, que lhe enarrou a plangente história de uma família de boa posição financeira e social - o pai médico de renome, a mãe talentosa investigadora na área da bioquímica, a filha uma promissora universitária já a dar cartas na filologia das línguas austronésias não obstante as constantes, mas felizmente breves, recaídas no vício dos estupefacientes - que receberam um rude golpe quando Sara Morais, de vinte e um anos, se suicidou após, aparentemente, ter sido violada. Alguns dias após o trágico incidente, Edgar recebeu correio electrónico de um tal Cristóvão Zarco que garantia ter fotos do acto ameaçando entregá-las em toda a sua mórbida glória ao menos escrupuloso tablóide do país caso não fossem cumpridas as suas exigências monetárias. Antes de acordarem a troca do dinheiro pelo cartão de memória contendo as fotografias, o chantagista, e presumido violador, foi detido por envolvimento num caso de extorsão a um conhecido líder partidário. O médico temia que as imagens viessem a público na subsequente investigação aos afazeres de Cristóvão e era imperativo recuperá-las antes que tal acontecesse.
Sentou-se ao lado do cliente. O Dr. Morais perguntou se as tinha encontrado. Estendeu a mão enluvada em couro negro, passando-lhe um rectângulo em papel brilhante, que o cirurgião recebeu limpando uma ligeira viscosidade no centro com o polegar. Apesar da pouca luz as pupilas de Edgar dilataram quando passou os olhos pela prova de contacto.

- Bom trabalho. Está incomodado por lhe ter mentido? Claro que não, você quer é o dinheiro.
As fotos não mostravam Zarco a violar ninguém; cada fotograma registava digitalmente o Dr. Edgar Morais na cama com uma rapariga com idade para ser sua filha.

O mercenário orgulhava-se de manter um serviço com praticamente cem por cento de eficácia, mas para isso era necessário seguir religiosamente preceitos como o da confiança. Perguntou ao cliente porque não lhe explicou a situação quando falaram da primeira vez. A resposta veio cheia de fidúcia, apesar do suor que se acumulava na testa do médico.

- E correr o risco de você sofrer uma crise súbita de moralismo bacoco? Não, não. Estúpido é o jogador que mostra todas as cartas que tem na mão… Amanhã passo-lhe o resto do dinheiro.
Ele tinha apenas três normas: 1.º Saber sempre, antes de aceitar, tudo sobre o seu cliente e o problema a resolver; 2.º O pagamento era adiantado na sua totalidade, sem excepções; 3.º Depois de aceite nenhum trabalho poderia ser cancelado por nenhuma das partes, excepto em caso de quebra das normas anteriores. Quando o Antiquário soube que ele havia aceitado receber apenas uma sinalização, avisou subtilmente Edgar para ter cuidado, mas o médico era demasiado ensimesmado para notar o alerta do amigo.

Edgar Morais levantou-se do banco, meio trôpego, e pediu o cartão de memória, o que recebeu foi a foto que ele tinha mostrado a Cristóvão Zarco no tribunal. O choque fez a prova de contacto escapar dos dedos do cirurgião.

- Porque é que você tem essa foto? É de minha...

Levou a mão ao peito, estertores subindo aos lábios, e caiu de joelhos em frente ao banco de jardim.

A prova de contacto pairava lentamente pelo ar.

O negócio era amoral, o que interessava era prestar um bom serviço. Se o cliente praticava boas ou más acções era irrelevante. Assim como assim o bem e o mal são conceitos subjectivos que dependem dos valores e cultura de cada um. Mas as regras de serviço eram sagradas. Era preciso ter em mente todas as circunstâncias de um caso para que se pudessem avaliar todos os riscos. Só um idiota aceitaria um trabalho em que o cliente não tivesse consciência desse facto. Não havia espaço para sansadurninhos com a mania das espertezas, só a verdade crua era suficiente.

A prova de contacto descia, ronceira, em direcção ao chão.

Edgar revirava os olhos enquanto escumava abundantemente pela boca entreaberta. Tombou para a frente batendo com a cara na gravilha. Um fio de sangue escorreu pela ligeira inclinação do solo.
A prova de contacto parou, iluminada por uma lista de luz atirada descuidadamente pelo caminho. O candeeiro público mostrou à noite a cara da amante, consensual ou não, do médico. Era a mesma da foto que o mercenário trazia. A rapariga não só tinha idade para ser filha do médico como efectivamente era.

Recolheu a prova de contacto, a foto de Sara Morais, o cartão de memória e mais tarde incinerou tudo, incluindo a roupa que trazia vestida, eliminando todos os vestígios da toxina de absorção cutânea com que tinha barrado o papel fotográfico.

Na manhã seguinte, usando um telemóvel pré-pago comprado há doze meses, nunca antes utilizado, ligou para uma cabine telefónica identificando-se a quem atendeu como Bernardo Soares. Do outro lado, uma voz cansada e rouca da idade mas ainda evidentemente feminina perguntou:

- O porco do meu marido já está morto?

FIM

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

POR LINHAS TORTAS - Parte 02

POR LINHAS TORTAS

Um conto d’O Solucionador

Parte 02: Sínicos e Soviéticos

O brilho do sol reverberava dançante na superfície da lagoa varrida languidamente pelo vento. Sentado no cais tosco - a madeira, escurecida de humidade, equilibrada sobre finos postes rodeados de canas, fundeados no leito lodoso e seguros mais por fé colectiva que por engenho humano - demolhava os pés tentando entrever nas algas a silhueta de um qualquer lagostim. O pai chamou-o da margem, a uns quatro metros do lugar onde se encontrava, mas quando se virou para responder lá estava ele, alto, ombros largos, a pele morena ligeiramente encarquilhada pela maresia, o cabelo muito negro e espesso. Com a boca escancarada num trejeito por demais trocista, a podridão de alguns dentes à vista, pegou no filho pelos colarinhos e arremessou-o para a água.

- Nada, Cristóvão! - e ria, o seu gargalhar ecoando nos ouvidos submersos do miúdo como se o pai estivesse mesmo ali ao lado. Pânico, água gelada a entrar em borbotões pelo nariz e boca, cortando os pulmões. Criaturas de longos dedos gosmentos agarravam-lhe as pernas, os braços, lançavam-se já sobre o seu pescoço - quanto mais se debatia mais se enrolava nos argaços do lago. Abriu os olhos sob a superfície e bateu as pernas, dando impulso em direcção ao vulto que o observava, deformado pelas ondas. Emergiu, mas tudo era diferente. A água havia levado para longe a lagoa pejada de juncos e patos, o cais frágil onde atracavam pequenos barcos a remos, a margem onde passava a pacata estrada de aldeia piscatória. A forma do falecido pai, também lavada da sua vista, fora substituída pelo “advogado” que o esmurrara. Finalmente acordado, Cristóvão apercebeu-se que estava num diminuto quarto quadrado, as paredes de cimento despidas traziam-lhe à ideia uma cave pouco usada. Pousando o balde, que havia servido para o arrancar ao pesadelo, o homem apontou-lhe a pêra e fez uma só pergunta. Cristóvão, atado a uma cadeira aparafusada ao chão, atentou nas proeminentes orelhas do raptor, na testa alteada por impiedosas incursões de alopecia, nariz adunco quase bissectando o lábio superior. Um indivíduo com uma fisionomia tão característica só podia planear matá-lo assim que obtivesse a informação que queria. Não lhe daria a satisfação de tornar a tarefa fácil. Talvez a polícia o conseguisse encontrar antes da situação se tornar mais crítica. O orelhudo repetiu a pergunta enquanto despia o casaco. Trocaram um longo momento de silêncio. O sequestrador virou costas e arregaçou as mangas da camisa. Pegou num pequeno estojo rectangular com fecho-éclair e desapareceu nas costas da cadeira. Cristóvão ouviu-o a abrir o fecho, espalhando objectos que, pelo som, aparentavam ter pequenas dimensões. Não sabia se o homem fazia os preparativos para o que se seguiria longe da vista como uma pequena mercê ou para aliar suspense ao terror.

De pé, olhando para os instrumentos organizados em cima do tampo da pequena mesa, o homem seleccionou duas hastes metálicas finas e inflexíveis com pegas de cortiça. Trilhando uma pega entre os lábios, tendo o cuidado de não trincar e estragar a corcha, acocorou-se ao lado de Cristóvão massajando-lhe o braço esquerdo perto do cotovelo. O prisioneiro tremeu, ele imobilizou-lhe o braço com um aperto forte da mão.

Anos antes, um velho fisiatra, emigrante de leste que afirmava ter integrado as fileiras do KGB na antiga URSS, tinha-o ajudado a recuperar de uma grave lesão adveniente de uma queda de dez andares. Durante as longas horas de terapia importunava-o com historiúnculas do passado inglório no Comité de Segurança, salpicando as narrativas com nomes sobejamente conhecidos para lhes emprestar uma certa cor realista. Se tivesse sorte, os episódios inanes davam lugar a descrições minuciosas do que o geronte chamava izkustvoto na ubezhdavaneto, a “arte da persuasão”. Nunca interrogou o terapeuta sobre o facto de utilizar expressões em búlgaro e não russo. Certo dia em que as dores dos exercícios de reabilitação eram insuportáveis, o idoso Ília retirou um estojo de acupunctura do armário branco que ficava por cima do lavatório e lançou-se num monólogo intermitente, pausando, de quando em vez, para procurar os vocábulos que se escapuliam da conversa, enquanto lhe enfiava as agulhas na pele.

- Sabes - tratava todos por tu, não conhecendo outro pronome - uns dizem que a acupunctura vem da Índia parte de uma série de práticas medicinais muito usadas lá. A maioria, no entanto, diz que vem da China, nascida há milhares de anos das experiências de um curandeiro que gostava de espetar flechas em soldados feridos. Li muito sobre ela nos diálogos do Imperador Amarelo. Para quê? No Comité estávamos sempre à procura de novas formas de extracção de informação e o próprio Yuri Andropov teve a ideia, depois de ter sido tratado por um acupunctor, de inverter o conceito: se esta arte podia ser usada para reduzir sofrimento, não seria possível usá-la para o infligir?
Não fazia ideia se Ília estaria a mentir ou a dizer a verdade, as hipóteses do líder do KGB alguma vez ter sido tratado por um chinês eram remotas e a tortura com agulhas era certamente tão antiga como a cura não sendo necessário um russo do século XX vir atirar palpites para o ar, mas a história despertou-lhe o interesse. Assim, ignorando os modelos anatómicos atravessados por meridianos de energia vital, o saber pseudocientífico e filosófico da anciã tradição, muniu-se de um conjunto de agulhas e de um conhecimento perfunctório das ramificações nervosas do corpo humano adoptando uma forma de persuasão rápida, simples, limpa e eficiente baseada na ideia original. Descobriu, por exemplo, que a “dor de cotovelo” estava directamente relacionada com o nervo ulnar, o maior nervo desprotegido do ser humano. 

Apalpou o cotovelo de Cristóvão. Encontrou o local. Enterrou a agulha até à pega.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

POR LINHAS TORTAS - Parte 01

POR LINHAS TORTAS

Um conto d’O Solucionador

Parte 01: Justiça Roubada

Passou o polegar e indicador pela gola do casaco e ajeitou-a alisando o tecido. Examinou-se durante alguns segundos nas portas de vidro, verificando se o resto do fato estava apresentável e, acima de tudo, respeitável. Concluída a análise, pegou na pasta executiva de couro negro que mantinha segura entre os joelhos e empurrou a porta que dava acesso ao edifício. Varreu o olhar pela larga recepção, cheia de luz que entrava pelas paredes de vidro, e rodou sobre os calcanhares para o lado direito dirigindo-se a um balcão cinzento metalizado atrás do qual dois seguranças fardados, e com um crachá ao pescoço, debitavam informações a quem as solicitava. Após breve troca de palavras, subiu o lanço de escadas que se erguia nas traseiras da recepção até ao primeiro andar e seguiu para uma porta de madeira envernizada com uma viseira vertical em vidro e rede de arame que ostentava uma placa dizendo “Secretaria 1”.

Encostado ao outro lado de um fino balcão, elevado a uma altura ligeiramente acima da cintura de um indivíduo de estatura média, que servia meramente de separador entre atendedor e atendidos, estava um homem de cabelo escuro e corredio de oleosidade.

- Posso ajudá-lo? - perguntou o administrativo com uma voz nasalada e arrastada de enfado.

Retirou um papel da sua mala e entregou-a num gesto fluido e confiante. O burocrata correu os olhos pela folha e toda a sua postura se alterou para uma de bajulação infrene.

- Peço desculpa “sotôr”! Não costuma andar por estes lados, pois não “sotôr”? O réu está à sua espera. Entra nesta porta aqui em frente, vira à sua direita e é a segunda porta. Prazer em conhecê-lo, “sotôr”! Se precisar de mais alguma coisa é só dizer, “sotôr”!

Empurrou a porta de dobradiças duplas com o cotovelo e percorreu o caminho indicado, os sapatos de sola de borracha silenciosos sobre o pavimento flutuante, estacando momentaneamente, como que à escuta, antes de abrir a nova porta num repente, fechando-a suavemente atrás de si. Cristóvão, farto de estar sozinho no interior da sala ergueu-se do seu assento olhando expectante o recém-chegado.

- Onde está o doutor Falcão? - Cristóvão referia-se, com certeza, a Falco Falcão, advogado de nome improvável que tratava de o defender. Infelizmente o conhecido causídico, exímio navegador do dédalo jurídico, malabarista dos bizantinos procedimentos judiciais, perito em proteger os seus clientes sob um manancial de papelórios legais tão compacto que vastas vezes pura e simplesmente desapareciam do sistema, encontrava-se recolhido em casa subitamente acometido de uma estranha variação do ritmo circadiano, talvez causada por uma injecção inesperada de fundos na sua conta bancária e uma SMS não identificada dizendo apenas: “Amanhã atrase-se 1H30”, que o fizeram ignorar o alarme matinal.

O cadastrado, alegado perpetrador de um novo crime, embasbacava-se, confuso e suspeitoso da troca de advogados que lhe era apresentada como inevitável - coitado do Falcão, doente da noite para o dia e sem prognóstico de breves melhoras - por um desconhecido que nem queria olhar para ele, fixando o infinito para lá da única janela da divisão, absorto em pensamentos que pareciam manifestar-se numa contagem silenciosa. Os lábios mudos marcavam três minutos. O ruído de engrenagens hidráulicas a funcionar romperam pensamentos que tentavam fazer sentido de toda a situação, o advogado substituto puxou de uma foto que deixou cair na mesa à vista do marginal. Era ela.

- Quem raio é…! - Cristóvão não terminou, derribado e atirado para a inconsciência por dois socos certeiros.

O tempo era escasso. Nas traseiras do edifício do Tribunal encontrava-se um automóvel com elevador cuja plataforma descendente estava quase a passar por aquela sala. O funcionário da vidreira havia terminado de substituir uma janela, situada dois andares acima, partida na noite anterior. Vendo já o fundo do elevador a espreitar pelo caixilho colocou uma máscara de protecção sobre as vias respiratórias e ocultou-se, preparando uma lata de aerossol descaracterizada. Atacou assim que a plataforma anivelou com a divisão em que se encontrava - a mão esquerda disparou agarrando o surpreso operário pela nuca e borrifou-lhe a cara com o atomizador seguro na esquerda. Carregou no botão vermelho do comando enquanto o trabalhador inanimado escorregava, lentamente, sentando-se encostado ao corrimão protector. Atirou Cristóvão para o ascensor, um gemido abafado escapando do peso morto, e seguiu-o premindo o botão verde que recomeçava a descida. A oscilação, lenta mas segura, da maquinaria tornou-se sacudida ameaçando parar ou, pior ainda, lançar-se em queda livre. Seria muito comprometedor ser apanhado ali, um vidreiro roncante de um lado e um criminoso em julgamento, adormecido à força de punhos, do outro. Parou a plataforma e leu a matrícula do veículo no reflexo de um carro metalizado à sua frente. Que azar. A chamada para um serviço urgente no Tribunal havia feito a empresa utilizar o carro mais próximo: o que se tinha deslocado à cidade para uma tão merecida manutenção. Observou as mangueiras e localizou a fuga perto da base do braço elevatório. Sempre atento a movimentos nas casas circundantes abriu a mala e espalhou algum equipamento avulso pelo chão metálico. Arrumou um rolo de fita isoladora no bolso do casaco, prendeu uma resistente corda de escalada ao mainel que rodeava o elevador montando, com ajuda de mais corda e um mosquetão para o freio, um crude e extremamente perigoso sistema de rappel. Apesar da perícia com que deu os nós, inveja de muitos montanhistas, hesitou antes de se largar naquele vazio de poucos metros mas não menos letal por isso. Deixou-se cair.

A reparação improvisada durou alguns segundos terminando no completo sucesso da viagem vertical. Ninguém parecia ter ainda dado o alerta, as vivendas adjacentes à estrada tão quedas quanto antes, mas nunca fiando em aparências rapidamente abandonou o trabalhador ao seu merecido sono reparador carregando Cristóvão até uma Vanette parada ali perto. Deitou-o num grosso tapete de trapos estendido na traseira da carrinha e tolheu-lhe os movimentos com atilhos plásticos invioláveis para o caso de retomar os sentidos enquanto conduzia. Fechou a porta traseira. Abriu a porta do condutor, sentou-se, fechou-a. Ligou o motor. Partiu.

Uma hora e quinze minutos antes de Falco Falcão pôr um pé dentro do Tribunal, Cristóvão Zarco havia desaparecido.

segunda-feira, 9 de março de 2015

O Retrato de Manoel de Oliveira (Segredo da sua longevidade)

Teoria: Manoel de Oliveira atingiu a idade que todos sabemos porque é na realidade cronófago - uma criatura que absorve o tempo dos outros. Sempre que algum de nós se senta para visualizar qualquer película do mestre cineasta somos roubados desse exacto período que é acrescentado, por artes possivelmente sobrenaturais, à sua linha da vida. Daí a sensação de perda de tempo que alguns experienciam após verem um filme dele.

A única maneira de destruir tal criatura é encontrar as bobines originais dos seus filmes e queimá-las ritualisticamente numa fogueira de S. João enquanto cantamos a lengalenga do Aniki Bóbó.

Ou não.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Rapsódia de Gaita-de-Foles

Parte 1 - Explicação em Dó Menor

"Não compreendo nada disto!" - queixou-se Felipe ao Doutor Trusga. A verdade é que o raio do rapaz era de uma compreensão lenta que até assustava! Já não conseguia ouvir as lamúrias, cuspidas em zurrar asinino, do aluno que lhe tinha solicitado ajuda extracurricular. Era já a quarta sessão e nada!

Valha-me São Sinfrónio, será possível que exista alguém assim tão estupido?, pensou Fernando Trusga, professor do ensino secundário e filósofo do queijo nas horas vagas.

Subitamente foram os dois atropelados por um bando de tocadores de gaita-de-foles.

 Parte 2 - Semi-saga de um Martelo Pneumático para Instrumentos de Sopro

TAT-TAT-TAT-TAT, fez o martelo pneumático a perfurar o solo com imparável força, guiado pela mão relutante de um trabalhador estóico. Pedro era o nome desse trabalhador e ganhava muito pouco.

Subitamente foi atropelado por um bando de tocadores de gaita-de-foles.

Parte 3 - Montanha para Gaita e Estrondo

Esta narrativa segue de perto a fantástica estória de Fi-póim-tim-póim, monge budista de um qualquer templo longínquo que ninguém sabe exactamente onde se encontra. Observemos atentamente enquanto o "olho" narrativo sobrevoa as montanhas tibetanas e mata dezenas de pássaros que tiveram a infelicidade de se atravessarem no seu caminho.

Subitamente uma gaita-de-foles gigante arrasa o templo.

Parte 4 - Horror e uma Gaita

Não pretendo assustar os meus potenciais leitores com o seguinte conto, mas gostaria de vos alertar para o perigo que correm permanecendo no Jardim. Certamente que pensarão que estou a gozar, ou que esta narração pertence ao mundo das percepções dementes de um cérebro doente, pois deixem-me dizer que tudo o que escrevo nestas páginas é a mais pura verdade por mais estranho que vos pareça. Não deixem que o facto de eu estar internado numa instituição psiquiátrica vos detenha de lerem atentamente estes grafismos... O quê? Não!! Por favor tem piedade! NÃAAAAO!!! Gurk... *FUENNN* (onomatopeia representativa do som de uma gaita-de-foles)

Uma Dose de Dados #03

Rubrica de considerações e ponderações demasiado prolixas sobre RPGs de mesa A Minha Estante: Star Ace Já se depararam com a express...