quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

POR LINHAS TORTAS - Parte 03

POR LINHAS TORTAS

Um conto d’O Solucionador

Parte 03: A Escrever Direito

Passou o polegar e indicador pela gola do casaco e ajeitou-a alisando o tecido. Examinou-se durante alguns segundos nas portas de vidro, verificando se o resto do fato estava apresentável e, acima de tudo, respeitável. Concluída a análise, pegou na pasta executiva de couro castanho que mantinha segura entre os joelhos e empurrou a porta que dava acesso ao edifício. Varreu o olhar pela larga recepção, cheia de luz que entrava pelas paredes de vidro, e seguiu até às escadas do edifício, erguidas nas traseiras da recepção, ascendendo ao primeiro andar. Entrou numa porta de madeira envernizada, com uma viseira vertical em vidro e rede de arame, ostentando uma placa que dizia “Secretaria 1”.

Encostado ao outro lado do fino balcão, elevado a uma altura ligeiramente acima da cintura de um indivíduo de estatura média e que servia de separador entre atendedor e atendido, estava Cajó, sempre com o cabelo corredio de oleosidade, culpa da seborreia crónica que o afligia.

- Então “sotôr”, por aqui? - perguntou o administrativo com a habitual postura de bajulação infrene perante quaisquer representantes da classe judicial - Tinham-me dito que estava doente.

- Doente? Não, não. - respondeu Falco Falcão, sem oscilações na voz, sem ares de surpresa, sempre pronto a cultivar inverdades com a destreza de um mentiroso patológico - Foi só uma indisposição matinal. Tive medo que fosse algo pior mas já passou. Sabe como é, amigo Carlos, o corpo quando dá sinais temos de os ouvir. É a PDI…

Entre elogios banais, atestando que Falco não só “estava ali para as curvas” como nem sequer aparentava a sua real idade de sessenta e uma primaveras, recolheu a documentação que necessitava e retirou-se, biqueiras dos impecáveis sapatos de verniz apontadas à sala onde o seu cliente esperava. Chegando ao destino estacou momentaneamente, como que à escuta, abrindo a porta num repente, fechando-a suavemente atrás de si. Cristóvão, sobressaltado, ainda atormentado pelo episódio vivido ao início da manhã, desabou da cadeira onde se sentava largado num pranto desaustinado. O advogado mostrou-se genuinamente contérrito. Após o suborno do dia anterior não contava encontrar o réu à sua espera, pelo menos não inteiro e consciente. O pobre diabo encolhia-se num canto, tentando proteger as extremidades, enquanto carpia efabulações sobre raptos e figuras sombrias, ostentando uma caraça impassível de nariz adunco e orelhas proeminentes, que torturavam espetando agulhas sob as úngulas. Falco sentou-se abrindo o último botão do casaco para deixar a barriga expandir confortavelmente.

- O que raio se passou aqui?

A carrinha galgava, desembaraçada, o asfalto da circunvalação rumo a destino certo. Ele abriu, com uma mão, a maleta colocada no banco do passageiro atirando para pequenas divisões a barbicha falsa, a probóscida e as orelhas exageradas. Limpou a face com um toalhete, enrolou-o dando-lhe como derradeira morada um saco preto contendo lixo que viajava no chão do veículo. Assinalou a mudança de direcção e guinou para a direita entrando num bairro residencial. Os prédios, sinais de humidade nas esquinas das varandas verdes, tinta já cascada da idade, reagiram com indiferença à chegada do automóvel desconhecido que, sem hesitações, estacionou em frente ao Lote N.º 13. Subiu ao segundo andar e destrancou a porta do apartamento B.

De luvas calçadas deitou mãos à obra, revistando cuidadosamente cada divisão do pequeno T1. Nos armários da cozinha antiquados - portas em aglomerado com folha de madeira envernizada e uma orla a toda a volta em borracha negra - encontrou apenas pacotes de pratos, copos e talheres em plástico. O único electrodoméstico presente era um velho, mas bem tratado, forno microondas. Havia um saco de lixo, que aparentava ser para cinquenta litros, encostado a uma parede, completamente cheio, bem atado e com a face externa sem qualquer sujidade ou gordura. A marquise não servia outro propósito senão deixar entrar luz no compartimento e armazenar alguns implementos de limpeza doméstica básica. Passou para o que deveria ser a “sala de estar”... totalmente vazia. Limitou-se a nocar as paredes procurando esconderijos em secções ocas. Tudo indicava que Cristóvão adoptava um estilo de vida bastante espartano, desprovido de qualquer real conforto, usando o apartamento apenas como dormitório ou, a julgar pela impressora profissional que encontrou no quarto, como local de “trabalho”. A falta de qualquer tipo de aparelho electrónico ou memória externa que pudesse estar ligada à máquina não o espantou. Examinando detalhadamente a casa de banho, achou uma máquina fotográfica de boa qualidade, e apetrechos afins, escondida no tanque do autoclismo, acondicionada em sacos selados. Fugindo à luz difusa da latrina, sentou-se num colchão de campismo esticado no quarto, ao lado do equipamento informático. Uma curta pesquisa pela memória da câmara confirmou-lhe que tinha em sua posse aquilo que o haviam contratado para reaver.

No escuro da noite o parque, alegre, verdejante e cheio de vida durante o dia, mostrava-se opressivo e intimidador. Mal iluminado por um candeeiro público, sentado com desconforto num banco humedecido pela geada, encontrava-se um distinto e anafado senhor num impermeável de boa qualidade, com a cabeça tapada por uma boina de fazenda. Ele observava-o das sombras, recordado da primeira vez que tinham falado, recomendação feita pelo Antiquário.

O Dr. Edgar Morais era um velho cliente do Antiquário, tendo até já recorrido às ligações deste a “certos elementos do submundo” para solicitar a compra de peças artísticas impossíveis de adquirir pelos circuitos legais e o eficiente receptador sabia bem que profissionais recomendar para cada serviço que chegava à sua mesa tosca nas traseiras da casa de penhores. Assim conheceu o cirurgião, já perto da casa dos sessenta, carreira na direcção de um hospital, que lhe enarrou a plangente história de uma família de boa posição financeira e social - o pai médico de renome, a mãe talentosa investigadora na área da bioquímica, a filha uma promissora universitária já a dar cartas na filologia das línguas austronésias não obstante as constantes, mas felizmente breves, recaídas no vício dos estupefacientes - que receberam um rude golpe quando Sara Morais, de vinte e um anos, se suicidou após, aparentemente, ter sido violada. Alguns dias após o trágico incidente, Edgar recebeu correio electrónico de um tal Cristóvão Zarco que garantia ter fotos do acto ameaçando entregá-las em toda a sua mórbida glória ao menos escrupuloso tablóide do país caso não fossem cumpridas as suas exigências monetárias. Antes de acordarem a troca do dinheiro pelo cartão de memória contendo as fotografias, o chantagista, e presumido violador, foi detido por envolvimento num caso de extorsão a um conhecido líder partidário. O médico temia que as imagens viessem a público na subsequente investigação aos afazeres de Cristóvão e era imperativo recuperá-las antes que tal acontecesse.
Sentou-se ao lado do cliente. O Dr. Morais perguntou se as tinha encontrado. Estendeu a mão enluvada em couro negro, passando-lhe um rectângulo em papel brilhante, que o cirurgião recebeu limpando uma ligeira viscosidade no centro com o polegar. Apesar da pouca luz as pupilas de Edgar dilataram quando passou os olhos pela prova de contacto.

- Bom trabalho. Está incomodado por lhe ter mentido? Claro que não, você quer é o dinheiro.
As fotos não mostravam Zarco a violar ninguém; cada fotograma registava digitalmente o Dr. Edgar Morais na cama com uma rapariga com idade para ser sua filha.

O mercenário orgulhava-se de manter um serviço com praticamente cem por cento de eficácia, mas para isso era necessário seguir religiosamente preceitos como o da confiança. Perguntou ao cliente porque não lhe explicou a situação quando falaram da primeira vez. A resposta veio cheia de fidúcia, apesar do suor que se acumulava na testa do médico.

- E correr o risco de você sofrer uma crise súbita de moralismo bacoco? Não, não. Estúpido é o jogador que mostra todas as cartas que tem na mão… Amanhã passo-lhe o resto do dinheiro.
Ele tinha apenas três normas: 1.º Saber sempre, antes de aceitar, tudo sobre o seu cliente e o problema a resolver; 2.º O pagamento era adiantado na sua totalidade, sem excepções; 3.º Depois de aceite nenhum trabalho poderia ser cancelado por nenhuma das partes, excepto em caso de quebra das normas anteriores. Quando o Antiquário soube que ele havia aceitado receber apenas uma sinalização, avisou subtilmente Edgar para ter cuidado, mas o médico era demasiado ensimesmado para notar o alerta do amigo.

Edgar Morais levantou-se do banco, meio trôpego, e pediu o cartão de memória, o que recebeu foi a foto que ele tinha mostrado a Cristóvão Zarco no tribunal. O choque fez a prova de contacto escapar dos dedos do cirurgião.

- Porque é que você tem essa foto? É de minha...

Levou a mão ao peito, estertores subindo aos lábios, e caiu de joelhos em frente ao banco de jardim.

A prova de contacto pairava lentamente pelo ar.

O negócio era amoral, o que interessava era prestar um bom serviço. Se o cliente praticava boas ou más acções era irrelevante. Assim como assim o bem e o mal são conceitos subjectivos que dependem dos valores e cultura de cada um. Mas as regras de serviço eram sagradas. Era preciso ter em mente todas as circunstâncias de um caso para que se pudessem avaliar todos os riscos. Só um idiota aceitaria um trabalho em que o cliente não tivesse consciência desse facto. Não havia espaço para sansadurninhos com a mania das espertezas, só a verdade crua era suficiente.

A prova de contacto descia, ronceira, em direcção ao chão.

Edgar revirava os olhos enquanto escumava abundantemente pela boca entreaberta. Tombou para a frente batendo com a cara na gravilha. Um fio de sangue escorreu pela ligeira inclinação do solo.
A prova de contacto parou, iluminada por uma lista de luz atirada descuidadamente pelo caminho. O candeeiro público mostrou à noite a cara da amante, consensual ou não, do médico. Era a mesma da foto que o mercenário trazia. A rapariga não só tinha idade para ser filha do médico como efectivamente era.

Recolheu a prova de contacto, a foto de Sara Morais, o cartão de memória e mais tarde incinerou tudo, incluindo a roupa que trazia vestida, eliminando todos os vestígios da toxina de absorção cutânea com que tinha barrado o papel fotográfico.

Na manhã seguinte, usando um telemóvel pré-pago comprado há doze meses, nunca antes utilizado, ligou para uma cabine telefónica identificando-se a quem atendeu como Bernardo Soares. Do outro lado, uma voz cansada e rouca da idade mas ainda evidentemente feminina perguntou:

- O porco do meu marido já está morto?

FIM

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