sexta-feira, 3 de maio de 2019

Uma Dose de Dados #03

Rubrica de considerações e ponderações demasiado prolixas sobre RPGs de mesa

A Minha Estante: Star Ace

Já se depararam com a expressão em inglês Old School Revival?

A sigla OSR é usada com frequência no marketing de RPGs para indicar que certo produto é uma reimpressão de um clássico ou altamente inspirado, ao ponto de emular, os estilos e proclividades desses ditos clássicos. A nostalgia, saudosismo e simples curiosidade dos revivalismos da velha-guarda fazem com que o entusiasta apaixonado, principalmente nesta era de distribuição digital, às vezes abra demais os cordões à bolsa povoando a sua biblioteca electrónica com curiosidades, raridades e estapafurdismos que nos saúdam com alegria dos anais da (relativamente) curta, mas vasta, história dos jogos de Role Play.

Star Ace Classic Set
RPG inspirado pelas aventuras de
Buck Rogers e Flash Gordon.

Para vosso gáudio - e não para sentir que estou a dar alguma utilidade a este meu coleccionismo obsessivo - envergo hoje umas figurativas lunetas na ponta do nariz e, de lampião em riste, enveredo pelas coleantes estantes do meu disco rígido, qual alfarrabista prospector, em busca de valiosos cartapácios... ou pelo menos de coisas engraçadas para mostrar.

Numa dessas prateleiras virtuais encontramos o Star Ace, um jogo dos anos 80, de ritmo solto, sobre aventuras temerárias no espaço sideral com um tom de ópera espacial da era do pulp dos anos quarenta: muita acção, muito melodrama, pouco rigor científico. Como diz o próprio produto "Este é um jogo de acção e aventura - não é um jogo de teorias e factos científicos. As teorias (ou factos) do paradigma científico actualmente aceite não são parte integral deste sistema de jogo."

O que é parte integral deste jogo são todas as bases necessárias para um(a) árbitro/a (ou CM, aqui chama-se Campaign Master) poder conduzir uma equipa de Ases Estelares numa missão em nome da Aliança Federada contra o enorme vulto do Império Galáctico enquanto a ameaça dos perigosos Xenófobos, que habitam o Núcleo da Galáxia, avança lenta mas seguramente para os subjugar a ambos.

Em termos mecânicos utiliza um sistema de resolução de tarefas com recurso a dados percentílicos (d100 - se não perceberem o que isto quer dizer leiam o anterior artigo desta rubrica aqui) e a uma tabela universal de resultados que vem nos manuais do jogo e no biombo de CM. Isso evita os cálculos complexos de alguns RPGs da época mas também significa que até interiorizarmos o uso da tabela, para cada tipo de acção tentada, o ritmo do combate fica aquém do desejável numa aventura com elevado grau de acção. Outro ponto negativo é a falta de novo material criado especificamente para este produto, uma vez que a empresa que o criou teve vida curta, ficando-se com a ideia de que o jogo original e as aventuras e suplementos publicados na altura eram apenas uma semente para um plano muito maior da parte dos autores.

Pacesetter System
Logótipo da empresa liderada
por John Rickets
Falando nos criadores, Star Ace foi originalmente publicado em 1984 pela Pacesetter Ltd, uma companhia de publicação - e oficina de criação - de jogos de mesa fundada por ex-profissionais da TSR (a editora original do Dungeons & Dragons) quando estes se viram sem emprego após a lendária empresa ter sido obrigada a despedir 75% dos seus recursos humanos para equilibrar contas. Uma história de empreendedorismo que não teve exactamente final feliz porque a Pacesetter fechou portas em 86 sem ter deixado grande marca no mundo dos jogos.

Haveria muito mais para dizer sobre este RPG (da Pacesetter falaremos mais no futuro) mas deixo ao vosso critério se a curiosidade ficou aguçada o suficiente para irem em busca de mais informações.

Peguem nas vossas pistolas laser, saltem para a carlinga da vossa nave espacial e façam esses dados rolar. Já sabem, há muitas coisas boas que se podem fazer em cima da mesa mas uma delas é jogar.

Até à próxima.🎲

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Uma Dose de Dados #02

Rubrica de considerações e ponderações demasiado prolixas sobre RPGs de mesa 

Introdução aos dados escaganifobéticos - Bloco I

Sem qualquer ponta de ironia, ou tom depreciativo, dizia um criador de jogos de mesa que os RPGs são uma sofisticação das brincadeiras de recreio como "polícias e ladrões", "príncipes e princesas" ou "brincar às casinhas." Pondo de parte a afectação que vem à toa do termo "sofisticado", é inegável que as semelhanças entre o faz-de-conta e um RPG moderno terminam na complexificação deste último. É necessário introduzir no processo um sistema de regras que permita a resolução de acções de forma imparcial, (até certo ponto) aleatória e alguém que as faça cumprir sem facciosismos.

Mas ao contrário do que se possa pensar, as regras não foram colocadas sobre a parte narrativa e fantasiosa do jogo para servirem de estrutura mecânica à estória e adjuvarem a acção. Pelo contrário, os RPGs de mesa modernos, que evoluíram dos Jogos de Guerra, foram-se tornando mais narrativos com o avanço dos tempos seguindo as propensões de cada nova geração de jogadores (por isso é que os mais funcionais exemplos de RPGs minimalistas em regras ou sem qualquer tipo de figura arbitral são comparativamente recentes).

Conjunto padrão de dados para D&D
Desta herança dos jogos de batalhas com miniaturas, muitos sistemas mantêm a resolução de tarefas por lançamento de dados, debrucemo-nos portanto sobre estes fascinantes sólidos geométricos numa breve exposição de factos, que não trará nada de novo a veteranos do género, mas que colocará jogadores e não jogadores em pé de igualdade quanto à nomenclatura utilizada neste nosso hobby.

A palavra "dado" remete-nos, habitualmente, para o bom velho hexaedro regular (cubo para os amigos) que ostenta nas faces os algarismos de um a seis; mas no mundo dos jogos de tabuleiro/mesa o universo destas ferramentas de aleatorização de resultados é um pouco menos restrito.

Os dados poliédricos são uma presença vulgar nos laboratórios de matemática para ensinar os sólidos platónicos de uma forma mais interactiva, mas a sua verdadeira vocação lúdica é cumprida naqueles momentos em que são utilizados para verificar, por exemplo, se um ladrão de nível 3 consegue fugir à guarda da cidade saltando de um telhado para outro sem se estatelar no chão.

Precisamente para lidar com esses momentos, os RPGs trouxeram com eles uma nomenclatura própria ("emprestadada" do Wargaming) para que conseguíssemos rápida e facilmente nomear o tipo de dado que é preciso para um tipo específico de acção ou resultado. Seria custoso, e até um pouco ridículo, em todas as sessões de um jogo dizer coisas como:

"Acertaste no Orc Ensandecido com o teu montante. Lança um decaedro para determinar dano." ou "O sistema de cibersegurança da mega-corporação descobre-te no ciberespaço. Uma descarga eléctrica sobe pela ficha que liga o teu interface neural à consola. Recebes dois octaedros de dano."

Portanto os dados são abreviados para a letra d (de dado - surpreendente, não é?) seguida do número de faces planas que possuem (um dado cúbico tem seis faces, como tal, é um d6). Simples e eficaz.

Curiosidade: sabiam que alguns RPGs que usam resolução por "cara-ou-coroa" chamam às moedas, d2 (dado de duas faces)?

O inusitado d100
Apesar de cada sistema de Role Play poder ter os seus próprios requisitos em termos de tipo e número de dados necessários, devido à prevalência e fama do Dungeons & Dragons, o chamado conjunto base de dados para RPG a nível internacional é o conjunto de sete peças utilizado pela quinta edição das regras de D&D composto por d4, d6, d8, d10, d12, d20 e um d10 especial (abreviado d00, numa excepção ao que vimos acima) que, juntamente com o d10 normal, apelidamos de dados de percentil ou percentagem e que substituem o desajeitado - mas curioso - d100 no que toca a obter resultados que vão de uma unidade a uma centena (por esta razão o conjunto do d10 e d00 é também por vezes chamado d100).

E pronto, agora, quando ouvirem um jogador de RPGs dizer que a arma que comprou na última sessão provoca 3d6 de dano, já sabem que isso significa que ele/ela tem de lançar três dados de seis lados sempre que conseguir atacar com sucesso aqueles esqueletos malandros que estão sempre à espreita num cemitério coberto por um manto de neblina.

Até à próxima!

E não se esqueçam de fazer coisas boas em cima da mesa.
Como jogar, por exemplo.🎲

terça-feira, 12 de março de 2019

Uma Dose de Dados #01

Rubrica de considerações e ponderações demasiado prolixas sobre RPGs de mesa 

Pela toca do coelho adentro

Numa encruzilhada entre o teatro de improviso e os jogos de tabuleiro encontra-se esse fantástico exercício de imaginação, esse faz-de-conta regrado, o Role Playing Game de papel e caneta; e não há nada exactamente igual a um grupo de amigos reunidos à volta de uma mesa a encarnarem uma miríada de personagens fantásticas que vivem um sem-número de aventuras mirabolantes.
A génese de muita diversão,
acusações de satanismo e inspiração
de maus filmes com Tom Hanks

Da fantasia medieval de Dungeons & Dragons e Pathfinder, passando pelo horror cósmico de Call of Cthulhu, pelo futurismo decadente do Cyberpunk 2020, chegando até (caso nenhum universo pré-fabricado nos excite o imaginário) aos sistemas de RPG genéricos como o FATE Core ou Savage Worlds, existe uma infinidade - tão vasta quanto a nossa própria mente - de opções deste tipo de diversão.


Com ajuda de uma mão cheia de dados (das mais variadas cores e feitios) e da orientação sempre amistosa - ou não - do/da GM (do ing. game master; designação internacional pela qual são conhecidas as pessoas que dirigem/arbitram uma sessão de RPG, responsáveis por criar todo o ambiente que rodeia as personagens dos jogadores, por colocar obstáculos no caminho destas e por fazer aplicar as regras quando necessário), cada membro do grupo colabora para contar parte de uma estória onde interpretam papéis de relevo: aventureiros a desbravar cavernas repletas de tesouro enquanto tentam escapar às armadilhas e bruxarias de um carocho que quer usar os seus ossos como ingrediente para construir um filactério que o tornará imortal; mercadores espaciais acidentalmente envolvidos numa operação de contrabando que trará novo equipamento a um grupo de rebeldes que pretende destronar o tirânico império galáctico vigente; agentes da autoridade que tentam desesperadamente encontrar a família raptada do presidente antes que este assine o perdão de vários membros de um sindicato de crime organizado; amorais espiões industriais contratados por uma mega-corporação para roubarem os segredos da concorrência; detectives privados a investigarem um homicídio invulgar que depressa desemboca numa conspiração repleta de traições e ocultismo; etc.

Uma mescla de Júlio Verne
com H.G. Wells
A minha primeira incursão por este fantástico hobby, infelizmente pouco jogado em Portugal, foi no dealbar do novo século - nos idos áureos do mIRC - quando conheci um jovem norte-americano num canal dedicado, maioritariamente, à discussão e partilha de banda desenhada japonesa. Em conversa sobre vários temas geek acabou por me aliciar, juntamente com mais três pessoas, a jogarmos uma sessão do seu RPG favorito, Space 1889, passado numa época vitoriana alternativa em que as viagens espaciais e a colonização do sistema solar eram uma realidade.

Uma sessão sem exemplo tornou-se uma campanha que demorou quase três anos a terminar e após as nossas personagens terem rumado em direcção ao pôr-do-sol (na verdade roubaram um navio espacial e zarparam para fora do sistema solar - provavelmente acabaram perdidas e esquecidas na imensidão cósmica, mas vamos pensar que viveram felizes para sempre) apercebi-me que o "bichinho" do RPG estava firmemente plantado em mim. É com esse mesmo "bichinho" que vos quero também infectar, convidando-vos para abrirem a mente, darem asas à fantasia e me acompanharem todas as semanas - se a procrastinação e o ócio não levarem a melhor - em pequenas viagens pelo mundo dos RPGs de mesa. Talvez no futuro nos encontremos à volta de um mapa desenhado em papel quadriculado.

Não se esqueçam: há muita coisa boa que se pode fazer numa mesa, mas uma delas é jogar.

Até à próxima!🎲

domingo, 22 de julho de 2018

A Sevandija no Castanheiro

“O ser humano não tem medo do desconhecido; tem medo que o conhecido termine abruptamente.”
Jiddu Krishnamurti

J. pegou no envelope amarelado que o carteiro lhe entregou, abriu-o e desdobrou cuidadosamente o papel puído que trazia no seu interior.

“Querida J.

“Cheguei, finalmente, esta quarta-feira, a casa do F. É um casebre insignificante: acanhado, parcamente iluminado e imundo, mais apropriado para a meia-vida miserável de um ermita insano do que para habitação principal de um catedrático - mas confesso que, com cada dia que passa, percebo melhor o apego que o nosso irmão tem por este lugar.

“Quando me viu quase não me reconheceu e mal olhava para mim, a cara enterrada nas páginas poeirentas e carcomidas de um dos seus incunábulos, decerto tentando traduzir a sabedoria dos antigos para um idioma perceptível nos dias de hoje. Coloquei-lhe a mão no ombro, falei-lhe da mãe e ele parou de murmurar entre dentes escutando-me com atenção pela primeira vez. Disse-lhe que tinha de regressar à aldeia comigo para tratarmos das partilhas e da venda do velho casarão.

“Ele riu-se. Soltou uma gargalhada sentida. Uma gargalhada que me assustou e magoou em medidas iguais. Agarrando-me pela mão puxou-me para si e vi, em toda a glória, a sua cara. Sobre um sorriso escancarado, fiada pérola terrificamente afiada, ficavam umas maçãs de rosto sumidas e macilentas, muito distantes da face redonda e bonacheirona que sempre conhecemos, uns olhos embaciados que perscrutavam muito para além do que estava à sua frente e, na testa, um círculo de pequenos cortes exsudando sangue parcialmente coagulado.

“- A Mãe está viva minha cara irmã! - e antes que eu conseguisse recuperar do terror que sentia para elevar a voz em protesto - Mas não aquela mãe pedestre que te fez carne e te largou, entre dores e vísceras, neste vale de lágrimas. Falo daquela Mãe que nos criou a todos, que devora a entropia e defeca as leis e ordem que governam o Cosmos. Aquela Mãe que elevou lodo marinho a uma forma de vida consciente e que regressa agora das profundezas da terra para podermos servi-la no cumprimento do nosso verdadeiro Destino. Porque me olhas assim? Não compreendes? Mais vais compreender!

“Puxou-me, com uma força que a sua forma magra não fazia prever, levando-me a reboque pelas colinas que se estendiam para lá da sua porta. Aquela paisagem, que hoje, enquanto escrevo estas palavras, se me afigura aprazível apesar de um pouco despida, enchia-me de um asco que começava no fundo do estômago, formava uma bola de chumbo, e batia constantemente na minha garganta negando-se a desaparecer ou a saltar-me definitivamente da boca. As ervas rasas e enfezadas lembravam-me bílis e os arbustos queimados dedos demoníacos que se estendiam para nos fazer tropeçar. No cimo da colina erguia-se um castanheiro enorme emanando o nauseante olor adocicado das suas flores, retorcido com idade centenária, cravejado de espaços ocos que me faziam pensar como é que esta árvore massiva ainda se encontrava de pé e notoriamente viva. Com um último encontrão F. empurrou-me a cabeça para o interior de um dos buracos no tronco do castanheiro.

“As palavras faltam-me para descrever convenientemente a beleza maravilhosa com que me deparei naquele recanto. Eu Vi-a! A Mãe! A sua bela pele alva e flácida, os seus braços que se estendiam do fundo do cáudice com estalidos de cartilagem ondulante. Eu Vi-a! A Mãe! Envolveu-me num abraço protector entre os seus membros víscidos aproximou a boca da minha testa para um ósculo de bendição. Antes de sentir o seu beijo da maneira primitiva que os meus sentidos me permitiam - a dor lancinante de milhares de agulhas a perfurarem a minha fronte - lembro-me do seu perfume acre abafar até o horrível cheiro da flor do castanheiro.

“A minha cabeça rasgou-se. Abriu-se a todos os segredos para lá da compreensão humana. Viajou para lá do horizonte do imaginável, banhou-se na luz do impossível. Quando Ela me largou, senti a ausência do seu amplexo com maior desconforto do que o causado pela sua presença e apercebi-me que, de olhos abertos para a verdade, seria sempre sua na eternidade do universo.

“Eu Vi-a! A Mãe! Vem vê-la também!

“Da tua irmã L.”

J. olhou para o fundo da página para um semicírculo sanguinolento que tinha, no seu centro, um chisco de matéria orgânica esponjosa de um cor-de-rosa acinzentado. A boca de J. entreabriu-se e a ponta da sua língua, pulsando com anélito, desceu vagarosamente sobre a folha.

FIM

segunda-feira, 18 de abril de 2016

A Sebenta do Inspector Policarpo #3 - Soluções

Um Fim Borrascoso

- Quem matou Laura Gusmão?
Rolando Norte

- De que pista relevante estava o inspector a falar?
Policarpo referia-se às gotas de sangue na cena do crime, que nos revelam quando este ocorreu.


Rolando afirmou que Laura deixou a bomba de gasolina quando o vento já soprava forte. Mas a forma circular das manchas sanguíneas indicavam que não deveria ainda correr grande vento quando a cabeça de Laura recebeu a fatal pancada com o poste. Isto mostrou duas coisas ao inspector: 1º O incidente não era um acidente provocado pela tempestade; 2º Rolando estava a mentir.

Eventualmente, com o decorrer do inquérito, Rolando Norte confessou tudo à polícia. No fatídico dia, Laura conto-lhe sobre o caso amoroso que mantinha com Joaquim e a sua intenção de fugir com o amante. Rolando estava também apaixonado por ela e a chocante revelação fê-lo explodir. Gritou e ameaçou Laura fazendo-a fugir pela sua vida, pensando que se fosse rápida o suficiente chegaria aos braços protectores de Joaquim. O desvairado Norte logrou apanhá-la, arrancou um poste meio solto da beira do caminho e deixou toda a sua raiva sair num só movimento de braços, apontado à cabeça da vítima. Quando a tempestade se abateu sobre a aldeia, o gasolineiro teve a ideia de contar às autoridades que Laura tinha saído do trabalho durante a tempestade e tudo não passava de um lamentável acidente.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

A Sebenta do Inspector Policarpo #3

Um Fim Borrascoso

Na meteorologia, como na vida, as mudanças súbitas de humor são sempre dignas de nota.

Gregório Policarpo, Inspector P.J.


Borrasca é uma das mais diminutas aldeias do distrito de Coimbra. Perdida no meio da serra, reconstruída sem atenção ao traçado histórico nem aos materiais típicos da zona, queda-se numa límbica irrelevância turística, amorrinhando a cada ano passado. Meia dúzia de casas amontoadas por entre os socalcos, o posto de gasolina do Sr. Rolando Norte e a Mercearia/Café “Toca do Lobo Mau” era tudo quanto existia naquele lugarejo. Nunca se passava nada em Borrasca. A envelhecida população era demasiado esparsa e desprovida de ambição, talvez devido aos anos gastos a pasmar onde “Judas perdeu as botas”, para investir esforço em qualquer empresa de real interesse comunitário - com excepção de mexericos sobre triângulos amorosos. Até porque a povoação tinha um bastante jeitoso.



Laura Gusmão era o vértice dessa forma geométrica metafórica. Recentemente chegada, juntamente com o marido Orlando, participantes num programa municipal de repovoamento do interior, vivia numa casa na Rua da Bica Seca a uns novecentos metros - por caminho sinuoso descendo até à estrada principal - da gasolineira onde pedira para montar uma barraca dedicada à venda de queijos caseiros fabricados por ela e pelo marido. Este empreendimento dos lacticínios regionais punha o casal em concorrência directa com Quim “Lobo Mau” cujo estabelecimento ficava a uns meros quinhentos metros do posto de abastecimento. A alcunha do taberneiro, que para além dos comes e bebes aproveitava a mercearia para vender bugigangas, roupas e mais que se lembrasse, não advinha, como seria de esperar, do seu mau génio mas sim da colecção de centenas de figurinhas de barro pintadas, representando ovelhas e carneiros de todos os tamanhos, expostos num móvel de madeira com quase dois metros de altura.

Uma animosidade natural cresceu entre Orlando Gusmão e Joaquim “Lobo Mau” que, curiosamente, não se estendia até Laura. A jovem esposa de Orlando possuía uma personalidade que se alimentava de atenção masculina e, infelizmente, havia pouco disso em Borrasca. Pouco tempo passou até se tornar hábito verem Laura a fechar a sua barraquinha para ir passar as tardes no café do Joaquim.
- Ele conta-me histórias ma-ra-vi-lho-sas - entoava ela, em tom de cançoneta para Rolando, o seu amigo do posto de gasolina. - E é tudo perfeitamente inocente. Mas o Orlando não compreende.
Numa tarde de inverno, quando o gotejar de tráfego cessou quase por completo, ventos fortes anunciados pela Protecção Civil (Alerta Amarelo) varreram a quietude bucólica de Borrasca. Uma hora mais tarde, estando já a tempestade amainada, uma carrinha “pão de forma”, levando uma família de turistas holandeses em busca de um WC aberto, cortou da estrada principal em direcção à aldeia. Subindo o caminho, na beira da estradeca, encontraram o corpo de Laura Gusmão. Chamados ao local, a GNR encontrou um velho poste de demarcação de terreno arrancado do solo. A ponta ensanguentada parecia corresponder à ferida aberta na nuca de Laura. Luís Estrada, inspector estagiário da PJ, examinou a ferida e as pequenas manchas perfeitamente circulares de sangue pingadas na terra batida da valeta.

- Parece que o poste se soltou com o vento e lhe deu uma traulitada na cabeça. Acho que não vamos ser aqui precisos.

- Talvez, - respondeu o inspector Gregório Policarpo, meio agastado por estar temporariamente emparelhado a um maçarico. - Mas antes de escrevermos no relatório que isto foi um acidente vamos dar uma vista de olhos às redondezas.

No topo da lista de afazeres estava falar com Orlando Gusmão. O marido de Laura parecia devastado.

- A Laura e eu tínhamos os nossos problemas, mas andávamos a tentar ultrapassar tudo. Prometeu-me que não visitava mais a loja do Joaquim. Hoje de manhã era só bom ambiente durante o pequeno-almoço. Depois desceu a pé até à bomba de gasolina para abrir a barraca. Garantiu-me que não ia ficar até tarde, que não devia haver grande trânsito por causa do alerta. Devia estar a subir para casa quando foi apanhada pela tempestade. 

Quim “Lobo Mau” parecia igualmente triste. O choque causado pela notícia atirou o solteirão de meia-idade para um inesperado estado de honestidade.

- Ela ia deixá-lo, - disse aos dois agentes. - Hoje. A minha irmã comprou-me esta porcaria desta loja. Podem confirmar com ela. A Laura ia fechar mais cedo para vir ter comigo; pegávamos no carro sem dizer “água vai” a ninguém.

- Quem acha disto tudo? - perguntou Luís ao parceiro enquanto desciam a rua. - A vítima estava a ir para casa ou para o snack-bar do Sr. Joaquim?

- É difícil ter a certeza, - admitiu Policarpo. - O caminho onde encontraram o corpo dá acesso a ambos os sítios. Por outro lado, com vento forte a bombar é provável que ela fosse procurar abrigo o mais rapidamente possível e o café fica mais perto. Vamos ver o que diz o dono do posto de abastecimento.

Rolando Norte mostrou-se também completamente destroçado com os acontecimentos, fazendo disparar os alarmes da suspeição na cabeça dos dois polícias.

- Ela era uma mulher fantástica. Tão cheia de vida. Não me disse nada sobre para onde ia. O negócio estava mais que morto e o vento começava a soprar forte. Não a devia ter deixado ir sozinha. É tudo culpa minha.

- E agora? - o estagiário coçava a cabeça enquanto Policarpo procurava as chaves do carro no casaco, todo encolhido do frio crepuscular. - Damos isto como acidente ou homicídio?

- Há, neste caso, uma pista muito relevante, - atirou o inspector destrancando finalmente o veículo. - E diz-nos que isto é um homicídio.

- Como…

- E também nos diz quem é o criminoso.

- Quem matou Laura Gusmão?

- De que pista relevante estava o inspector a falar?

sexta-feira, 1 de abril de 2016

A Sebenta do Inspector Policarpo #2 - Soluções

Baleia Caçada em Terra

- Quem é que os inspectores consideram o seu principal suspeito?
Diogo Lobo-Antunes

- Quais os fundamentos dessa suspeita?
O uso de uma arma de tão difícil manuseio sugere que o crime foi preparado apressadamente essa mesma noite. O local do crime e o facto de alguém ter remexido nos arquivos do clube sugere que o crime está ligado a assuntos do Yacht Club, reduzindo assim a lista de suspeitos para todos aqueles que participaram na reunião e também a sobrinha dos Baleia.

O criminoso sabia disparar a pistola, por isso deve estar ligado por laços de sangue ou afinidade à família Baleia. Assim a lista de suspeitos, novamente reduzida, passa a conter Celso Baleia e o casal Lobo-Antunes. Floriana Lobo-Antunes, que trabalhou até tarde num restaurante aberto ao público, tem um álibi facilmente verificável. Tanto Celso Baleia como Diogo Lobo-Antunes, ambos de baixa estatura, teriam a necessidade de utilizar um escalão improvisado - a cadeira em frente à lareira - para chegarem à arma do crime. No entanto a grave artrite nos joelhos de Celso impedi-lo-iam de andar a trepar mobiliário. Portanto, o suspeito principal é Diogo Lobo-Antunes.

Os inspectores acabaram por descobrir que Roberto Baleia suspeitava que o irmão andasse a desviar dinheiro dos fundos da associação e pediu discretamente a Lobo-Antunes, antes da reunião, para se encontrarem novamente no clube após todos os membros terem partido. Quando regressaram e reentraram no edifício (com ajuda da chave na posse de Roberto), começaram a vistoriar os registos financeiros arquivados na secretaria. As suspeitas contra Celso eram fundadas, mas o irmão desconhecia que Lobo-Antunes estava de conluio com o tesoureiro.

Apercebendo-se que o escrutínio dos arquivos revelaria a sua cumplicidade, Diogo saiu da secretaria desculpando-se com uma súbita vontade de visitar o WC, trepou a cadeira retirando a pistola da parede, chamou por Roberto para que ele saísse do escritório e, valendo-se da fraca mobilidade da vítima, trespassou-o com o arpão. O facto de estar a alguns metros de distância evitou que a sua roupa ficasse manchada com sangue - o que teria acontecido com métodos de homicídio mais confrontacionais.

O advogado limpou a arma, arrumou os ficheiros apressadamente e regressou a casa um pouco antes da esposa.

Uma Dose de Dados #03

Rubrica de considerações e ponderações demasiado prolixas sobre RPGs de mesa A Minha Estante: Star Ace Já se depararam com a express...