domingo, 22 de julho de 2018

A Sevandija no Castanheiro

“O ser humano não tem medo do desconhecido; tem medo que o conhecido termine abruptamente.”
Jiddu Krishnamurti

J. pegou no envelope amarelado que o carteiro lhe entregou, abriu-o e desdobrou cuidadosamente o papel puído que trazia no seu interior.

“Querida J.

“Cheguei, finalmente, esta quarta-feira, a casa do F. É um casebre insignificante: acanhado, parcamente iluminado e imundo, mais apropriado para a meia-vida miserável de um ermita insano do que para habitação principal de um catedrático - mas confesso que, com cada dia que passa, percebo melhor o apego que o nosso irmão tem por este lugar.

“Quando me viu quase não me reconheceu e mal olhava para mim, a cara enterrada nas páginas poeirentas e carcomidas de um dos seus incunábulos, decerto tentando traduzir a sabedoria dos antigos para um idioma perceptível nos dias de hoje. Coloquei-lhe a mão no ombro, falei-lhe da mãe e ele parou de murmurar entre dentes escutando-me com atenção pela primeira vez. Disse-lhe que tinha de regressar à aldeia comigo para tratarmos das partilhas e da venda do velho casarão.

“Ele riu-se. Soltou uma gargalhada sentida. Uma gargalhada que me assustou e magoou em medidas iguais. Agarrando-me pela mão puxou-me para si e vi, em toda a glória, a sua cara. Sobre um sorriso escancarado, fiada pérola terrificamente afiada, ficavam umas maçãs de rosto sumidas e macilentas, muito distantes da face redonda e bonacheirona que sempre conhecemos, uns olhos embaciados que perscrutavam muito para além do que estava à sua frente e, na testa, um círculo de pequenos cortes exsudando sangue parcialmente coagulado.

“- A Mãe está viva minha cara irmã! - e antes que eu conseguisse recuperar do terror que sentia para elevar a voz em protesto - Mas não aquela mãe pedestre que te fez carne e te largou, entre dores e vísceras, neste vale de lágrimas. Falo daquela Mãe que nos criou a todos, que devora a entropia e defeca as leis e ordem que governam o Cosmos. Aquela Mãe que elevou lodo marinho a uma forma de vida consciente e que regressa agora das profundezas da terra para podermos servi-la no cumprimento do nosso verdadeiro Destino. Porque me olhas assim? Não compreendes? Mais vais compreender!

“Puxou-me, com uma força que a sua forma magra não fazia prever, levando-me a reboque pelas colinas que se estendiam para lá da sua porta. Aquela paisagem, que hoje, enquanto escrevo estas palavras, se me afigura aprazível apesar de um pouco despida, enchia-me de um asco que começava no fundo do estômago, formava uma bola de chumbo, e batia constantemente na minha garganta negando-se a desaparecer ou a saltar-me definitivamente da boca. As ervas rasas e enfezadas lembravam-me bílis e os arbustos queimados dedos demoníacos que se estendiam para nos fazer tropeçar. No cimo da colina erguia-se um castanheiro enorme emanando o nauseante olor adocicado das suas flores, retorcido com idade centenária, cravejado de espaços ocos que me faziam pensar como é que esta árvore massiva ainda se encontrava de pé e notoriamente viva. Com um último encontrão F. empurrou-me a cabeça para o interior de um dos buracos no tronco do castanheiro.

“As palavras faltam-me para descrever convenientemente a beleza maravilhosa com que me deparei naquele recanto. Eu Vi-a! A Mãe! A sua bela pele alva e flácida, os seus braços que se estendiam do fundo do cáudice com estalidos de cartilagem ondulante. Eu Vi-a! A Mãe! Envolveu-me num abraço protector entre os seus membros víscidos aproximou a boca da minha testa para um ósculo de bendição. Antes de sentir o seu beijo da maneira primitiva que os meus sentidos me permitiam - a dor lancinante de milhares de agulhas a perfurarem a minha fronte - lembro-me do seu perfume acre abafar até o horrível cheiro da flor do castanheiro.

“A minha cabeça rasgou-se. Abriu-se a todos os segredos para lá da compreensão humana. Viajou para lá do horizonte do imaginável, banhou-se na luz do impossível. Quando Ela me largou, senti a ausência do seu amplexo com maior desconforto do que o causado pela sua presença e apercebi-me que, de olhos abertos para a verdade, seria sempre sua na eternidade do universo.

“Eu Vi-a! A Mãe! Vem vê-la também!

“Da tua irmã L.”

J. olhou para o fundo da página para um semicírculo sanguinolento que tinha, no seu centro, um chisco de matéria orgânica esponjosa de um cor-de-rosa acinzentado. A boca de J. entreabriu-se e a ponta da sua língua, pulsando com anélito, desceu vagarosamente sobre a folha.

FIM

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