Um Fim Borrascoso
Na meteorologia, como na vida, as mudanças súbitas de humor são sempre dignas de nota.
Gregório Policarpo, Inspector P.J.
Laura Gusmão era o vértice dessa forma geométrica metafórica. Recentemente chegada, juntamente com o marido Orlando, participantes num programa municipal de repovoamento do interior, vivia numa casa na Rua da Bica Seca a uns novecentos metros - por caminho sinuoso descendo até à estrada principal - da gasolineira onde pedira para montar uma barraca dedicada à venda de queijos caseiros fabricados por ela e pelo marido. Este empreendimento dos lacticínios regionais punha o casal em concorrência directa com Quim “Lobo Mau” cujo estabelecimento ficava a uns meros quinhentos metros do posto de abastecimento. A alcunha do taberneiro, que para além dos comes e bebes aproveitava a mercearia para vender bugigangas, roupas e mais que se lembrasse, não advinha, como seria de esperar, do seu mau génio mas sim da colecção de centenas de figurinhas de barro pintadas, representando ovelhas e carneiros de todos os tamanhos, expostos num móvel de madeira com quase dois metros de altura.
Uma animosidade natural cresceu entre Orlando Gusmão e Joaquim “Lobo Mau” que, curiosamente, não se estendia até Laura. A jovem esposa de Orlando possuía uma personalidade que se alimentava de atenção masculina e, infelizmente, havia pouco disso em Borrasca. Pouco tempo passou até se tornar hábito verem Laura a fechar a sua barraquinha para ir passar as tardes no café do Joaquim.
- Ele conta-me histórias ma-ra-vi-lho-sas - entoava ela, em tom de cançoneta para Rolando, o seu amigo do posto de gasolina. - E é tudo perfeitamente inocente. Mas o Orlando não compreende.
Numa tarde de inverno, quando o gotejar de tráfego cessou quase por completo, ventos fortes anunciados pela Protecção Civil (Alerta Amarelo) varreram a quietude bucólica de Borrasca. Uma hora mais tarde, estando já a tempestade amainada, uma carrinha “pão de forma”, levando uma família de turistas holandeses em busca de um WC aberto, cortou da estrada principal em direcção à aldeia. Subindo o caminho, na beira da estradeca, encontraram o corpo de Laura Gusmão. Chamados ao local, a GNR encontrou um velho poste de demarcação de terreno arrancado do solo. A ponta ensanguentada parecia corresponder à ferida aberta na nuca de Laura. Luís Estrada, inspector estagiário da PJ, examinou a ferida e as pequenas manchas perfeitamente circulares de sangue pingadas na terra batida da valeta.
- Parece que o poste se soltou com o vento e lhe deu uma traulitada na cabeça. Acho que não vamos ser aqui precisos.
- Talvez, - respondeu o inspector Gregório Policarpo, meio agastado por estar temporariamente emparelhado a um maçarico. - Mas antes de escrevermos no relatório que isto foi um acidente vamos dar uma vista de olhos às redondezas.
No topo da lista de afazeres estava falar com Orlando Gusmão. O marido de Laura parecia devastado.
- A Laura e eu tínhamos os nossos problemas, mas andávamos a tentar ultrapassar tudo. Prometeu-me que não visitava mais a loja do Joaquim. Hoje de manhã era só bom ambiente durante o pequeno-almoço. Depois desceu a pé até à bomba de gasolina para abrir a barraca. Garantiu-me que não ia ficar até tarde, que não devia haver grande trânsito por causa do alerta. Devia estar a subir para casa quando foi apanhada pela tempestade.
Quim “Lobo Mau” parecia igualmente triste. O choque causado pela notícia atirou o solteirão de meia-idade para um inesperado estado de honestidade.
- Ela ia deixá-lo, - disse aos dois agentes. - Hoje. A minha irmã comprou-me esta porcaria desta loja. Podem confirmar com ela. A Laura ia fechar mais cedo para vir ter comigo; pegávamos no carro sem dizer “água vai” a ninguém.
- Quem acha disto tudo? - perguntou Luís ao parceiro enquanto desciam a rua. - A vítima estava a ir para casa ou para o snack-bar do Sr. Joaquim?
- É difícil ter a certeza, - admitiu Policarpo. - O caminho onde encontraram o corpo dá acesso a ambos os sítios. Por outro lado, com vento forte a bombar é provável que ela fosse procurar abrigo o mais rapidamente possível e o café fica mais perto. Vamos ver o que diz o dono do posto de abastecimento.
Rolando Norte mostrou-se também completamente destroçado com os acontecimentos, fazendo disparar os alarmes da suspeição na cabeça dos dois polícias.
- Ela era uma mulher fantástica. Tão cheia de vida. Não me disse nada sobre para onde ia. O negócio estava mais que morto e o vento começava a soprar forte. Não a devia ter deixado ir sozinha. É tudo culpa minha.
- E agora? - o estagiário coçava a cabeça enquanto Policarpo procurava as chaves do carro no casaco, todo encolhido do frio crepuscular. - Damos isto como acidente ou homicídio?
- Há, neste caso, uma pista muito relevante, - atirou o inspector destrancando finalmente o veículo. - E diz-nos que isto é um homicídio.
- Como…
- E também nos diz quem é o criminoso.
- Quem matou Laura Gusmão?
- De que pista relevante estava o inspector a falar?
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