POR LINHAS TORTAS
Um conto d’O Solucionador
Parte 01: Justiça Roubada
Passou o polegar e indicador pela gola do casaco e ajeitou-a alisando o tecido. Examinou-se durante alguns segundos nas portas de vidro, verificando se o resto do fato estava apresentável e, acima de tudo, respeitável. Concluída a análise, pegou na pasta executiva de couro negro que mantinha segura entre os joelhos e empurrou a porta que dava acesso ao edifício. Varreu o olhar pela larga recepção, cheia de luz que entrava pelas paredes de vidro, e rodou sobre os calcanhares para o lado direito dirigindo-se a um balcão cinzento metalizado atrás do qual dois seguranças fardados, e com um crachá ao pescoço, debitavam informações a quem as solicitava. Após breve troca de palavras, subiu o lanço de escadas que se erguia nas traseiras da recepção até ao primeiro andar e seguiu para uma porta de madeira envernizada com uma viseira vertical em vidro e rede de arame que ostentava uma placa dizendo “Secretaria 1”.
Encostado ao outro lado de um fino balcão, elevado a uma altura ligeiramente acima da cintura de um indivíduo de estatura média, que servia meramente de separador entre atendedor e atendidos, estava um homem de cabelo escuro e corredio de oleosidade.
- Posso ajudá-lo? - perguntou o administrativo com uma voz nasalada e arrastada de enfado.
Retirou um papel da sua mala e entregou-a num gesto fluido e confiante. O burocrata correu os olhos pela folha e toda a sua postura se alterou para uma de bajulação infrene.
- Peço desculpa “sotôr”! Não costuma andar por estes lados, pois não “sotôr”? O réu está à sua espera. Entra nesta porta aqui em frente, vira à sua direita e é a segunda porta. Prazer em conhecê-lo, “sotôr”! Se precisar de mais alguma coisa é só dizer, “sotôr”!
Empurrou a porta de dobradiças duplas com o cotovelo e percorreu o caminho indicado, os sapatos de sola de borracha silenciosos sobre o pavimento flutuante, estacando momentaneamente, como que à escuta, antes de abrir a nova porta num repente, fechando-a suavemente atrás de si. Cristóvão, farto de estar sozinho no interior da sala ergueu-se do seu assento olhando expectante o recém-chegado.
- Onde está o doutor Falcão? - Cristóvão referia-se, com certeza, a Falco Falcão, advogado de nome improvável que tratava de o defender. Infelizmente o conhecido causídico, exímio navegador do dédalo jurídico, malabarista dos bizantinos procedimentos judiciais, perito em proteger os seus clientes sob um manancial de papelórios legais tão compacto que vastas vezes pura e simplesmente desapareciam do sistema, encontrava-se recolhido em casa subitamente acometido de uma estranha variação do ritmo circadiano, talvez causada por uma injecção inesperada de fundos na sua conta bancária e uma SMS não identificada dizendo apenas: “Amanhã atrase-se 1H30”, que o fizeram ignorar o alarme matinal.
O cadastrado, alegado perpetrador de um novo crime, embasbacava-se, confuso e suspeitoso da troca de advogados que lhe era apresentada como inevitável - coitado do Falcão, doente da noite para o dia e sem prognóstico de breves melhoras - por um desconhecido que nem queria olhar para ele, fixando o infinito para lá da única janela da divisão, absorto em pensamentos que pareciam manifestar-se numa contagem silenciosa. Os lábios mudos marcavam três minutos. O ruído de engrenagens hidráulicas a funcionar romperam pensamentos que tentavam fazer sentido de toda a situação, o advogado substituto puxou de uma foto que deixou cair na mesa à vista do marginal. Era ela.
- Quem raio é…! - Cristóvão não terminou, derribado e atirado para a inconsciência por dois socos certeiros.
O tempo era escasso. Nas traseiras do edifício do Tribunal encontrava-se um automóvel com elevador cuja plataforma descendente estava quase a passar por aquela sala. O funcionário da vidreira havia terminado de substituir uma janela, situada dois andares acima, partida na noite anterior. Vendo já o fundo do elevador a espreitar pelo caixilho colocou uma máscara de protecção sobre as vias respiratórias e ocultou-se, preparando uma lata de aerossol descaracterizada. Atacou assim que a plataforma anivelou com a divisão em que se encontrava - a mão esquerda disparou agarrando o surpreso operário pela nuca e borrifou-lhe a cara com o atomizador seguro na esquerda. Carregou no botão vermelho do comando enquanto o trabalhador inanimado escorregava, lentamente, sentando-se encostado ao corrimão protector. Atirou Cristóvão para o ascensor, um gemido abafado escapando do peso morto, e seguiu-o premindo o botão verde que recomeçava a descida. A oscilação, lenta mas segura, da maquinaria tornou-se sacudida ameaçando parar ou, pior ainda, lançar-se em queda livre. Seria muito comprometedor ser apanhado ali, um vidreiro roncante de um lado e um criminoso em julgamento, adormecido à força de punhos, do outro. Parou a plataforma e leu a matrícula do veículo no reflexo de um carro metalizado à sua frente. Que azar. A chamada para um serviço urgente no Tribunal havia feito a empresa utilizar o carro mais próximo: o que se tinha deslocado à cidade para uma tão merecida manutenção. Observou as mangueiras e localizou a fuga perto da base do braço elevatório. Sempre atento a movimentos nas casas circundantes abriu a mala e espalhou algum equipamento avulso pelo chão metálico. Arrumou um rolo de fita isoladora no bolso do casaco, prendeu uma resistente corda de escalada ao mainel que rodeava o elevador montando, com ajuda de mais corda e um mosquetão para o freio, um crude e extremamente perigoso sistema de rappel. Apesar da perícia com que deu os nós, inveja de muitos montanhistas, hesitou antes de se largar naquele vazio de poucos metros mas não menos letal por isso. Deixou-se cair.
A reparação improvisada durou alguns segundos terminando no completo sucesso da viagem vertical. Ninguém parecia ter ainda dado o alerta, as vivendas adjacentes à estrada tão quedas quanto antes, mas nunca fiando em aparências rapidamente abandonou o trabalhador ao seu merecido sono reparador carregando Cristóvão até uma Vanette parada ali perto. Deitou-o num grosso tapete de trapos estendido na traseira da carrinha e tolheu-lhe os movimentos com atilhos plásticos invioláveis para o caso de retomar os sentidos enquanto conduzia. Fechou a porta traseira. Abriu a porta do condutor, sentou-se, fechou-a. Ligou o motor. Partiu.
Uma hora e quinze minutos antes de Falco Falcão pôr um pé dentro do Tribunal, Cristóvão Zarco havia desaparecido.